O transtorno do espectro autista, como o próprio nome diz, se traduz em um contínuo que afeta principalmente a capacidade de interação social, a comunicação e o comportamento do indivíduo. Pense no arco íris. Ele é um arco multicolorido onde não se pode determinar com exatidão onde termina uma cor e começa outra, entretanto é visível que as cores que o compõe são muito distintas. Assim também ocorre com o autismo. Indivíduos que apresentam essa disfunção diferem entre si no tipo e na intensidade dos sintomas. Não podemos generalizar e tratar todos da mesma maneira, razão pela qual há tantos mitos sobre o autismo. Vamos elencar alguns deles e esclarecer os equívocos:
1º. “O autista tem um mundo próprio” – Esse mito vem primeiro porque é o mais difundido socialmente. O isolamento é um comportamento comum em muitos indivíduos autistas, porém nem sempre significa um alheamento. Muito pelo contrário, pode representar uma falta de interesse em interagir. Assim sendo, o indivíduo autista pode compreender perfeitamente o que está ocorrendo em torno de si e simplesmente opta em não participar.
2º. “O autista não se comunica” – A dificuldade de comunicação do autista geralmente é muito perceptível e é comum que a criança autista demore ou não desenvolva a fala. Devido aos interesses restritos a comunicação pode não ser alvo de investimento da criança que prefere estar cercada por objetos, cujo manuseio pode fugir do convencional. Entretanto, em muitos casos, pode se estabelecer uma comunicação efetiva, mesmo que não verbal. O mais importante nesses casos, é que seja direta e sem prolongamentos.
3º. “O autista sempre balança o corpo” – O balanceio faz parte do repertório comportamental de muitos autistas, assim como movimentos estereotipados das mãos e também expressões faciais que mais parecem caretas. Entretanto, assim como a fala, esse comportamento pode ou não estar presente.
4º. “O autista não é inteligente” – O comprometimento cognitivo geralmente está presente no transtorno do espectro autista. Mas há casos onde é possível não só a alfabetização, podendo ingressar na Universidade, como o caso clássico da PhD em Medicina Veterinária Temple Grandin. Entretanto, há indivíduos que apresentam quadros tão graves que necessitam de apoios em todas as áreas e durante toda a vida. É exatamente sobre esses casos que quero me debruçar mais demoradamente.
Você já pensou no número de famílias que têm o curso de suas vidas mudado drasticamente por conta do autismo? Muito se fala da criança autista. E o adulto autista? E o idoso autista? Como a sociedade e seus dispositivos lidam com aqueles cujos pais são idosos e também demandam cuidados extensivos ou já faleceram? No atendimento à pessoa acometida pelo transtorno autista é fundamental a presença de uma equipe multiprofissional, geralmente composta por: psiquiatra, neurologista, clínico, psicólogo, fisioterapeuta, fonoaudiólogo, nutricionista, enfermeiro, pedagogo e o cuidador. Acreditar que a atuação desses profissionais é pontual é um engodo. A soma de esforços da equipe é contínua e perene, isso quer dizer, por toda a vida do indivíduo.
E quando a família não dispõe de recursos financeiros? Esse atendimento com equipe multidisciplinar tem um alto custo, sem falar na alimentação balanceada, não raro o uso de suplementos alimentares, espessantes e na terapia medicamentosa. E a família? Quem vai cuidar da família? Os pais conseguem estudar? Cursar uma faculdade, fazer um mestrado? A mãe consegue trabalhar? Perguntas como essas são seguidas de um longo silêncio. E aí? A realidade é outra. E quando há outras deficiências associadas? O indivíduo pode apresentar deficiência intelectual, auditiva, visual e motora, concomitante com o autismo. Não raro apresentam também doenças neurológicas como a epilepsia.
Há também as síndromes como a de Sanfilippo, de Edwards, de Rett, a Esclerose Tuberosa e tantas outras. Durante o dia, a mãe se desdobra nos cuidados do filho autista: tem que ministrar medicamentos na hora certa, levar na fonoaudióloga, na hidroterapia, no retorno médico e na escola. Isso quando há recursos. E os outros filhos? Quem vai olhar? E quando os pais adoecem? E quando os pais envelhecem? Quando há outros irmãos e estes se casam e seguem a sua vida, morando fora, fazendo um intercâmbio talvez? Em quase duas décadas atendendo autistas e suas famílias foram inúmeras vezes que ouvi as mães dizerem que mal conseguiam pentear os cabelos e escovar os dentes. Os casamentos se desmoronam diante tamanha dor e dificuldades e o lar vira terreno fértil para o desequilíbrio e a desagregação familiar.
Por isso, caros leitores, não nos enganemos com soluções mágicas e mirabolantes para situações tão complexas. Por muitas vezes a mídia mostra apenas os casos bem sucedidos da inclusão social. E realmente eles existem e são estímulos para nunca desistir e continuar investindo e, sobretudo acreditando no potencial do ser humano. Porém, é imprescindível nos dias atuais, se livrar das visões romanceadas que giram em torno do autismo, são armadilhas perigosas que também rondam profissionais de educação e de saúde, que distantes e desavisados dessa realidade, criam e disseminam discursos equivocados e que podem prejudicar a vida de quem tem necessidades muito peculiares e especiais. Para se falar do autismo não basta apenas os textos e artigos acadêmicos, eles são de grande valia, mas não dispensam anos preciosos de dedicação nessa seara, olhando nos olhos, segurando nas mãos, caminhando lado a lado na convivência cotidiana de quem por muitos anos foi invisível aos olhos da sociedade.
NATÁLIA INÊS COSTA – Mestre em Psicologia do Desenvolvimento Humano com ênfase em Diferenças Individuais, Inteligência e Personalidade pela FAFICH/UFMG e diretora presidente do CENSA-Betim.